sábado, 24 de abril de 2010
Dias da Música: Sob o signo de Descartes
Com a apresentação de uma das oratórias de Handel, arrancou pelas 21 horas de ontem a quarta edição dos 'Dias da Música em Belém'.
Desde 2007 que este evento anual leva a assinatura da equipa liderada por António Mega Ferreira, herdeiro de uma iniciativa de gigantesco sucesso que René Martin, a partir da 'Folle Journée' de Nantes, lançou há dez anos no Centro Cultural de Belém com a designação de 'Festa da Música'. Sempre no mês de Abril, com sete recintos dentro do CCB repletos de entusiastas e de curiosos de todas as idades, os 'Dias da Música' têm vindo a prosperar. Enquanto na primeira edição se realizou um total de 62 concertos e recitais dedicados à música composta para o piano, em 2008 concretizaram-se 66 espectáculos e cumpriu-se a meta dos 79 espectáculos na edição seguinte. Para este fim de semana, estão programados 71 espectáculos com o custo dos ingressos a variar entre os 10€ e os 3€. E ainda se podem adquirir bilhetes para vários dos espectáculos programados. Em 2009, foram vendidos 34 000 bilhetes. Amanhã ao fim da tarde, a organização fornece os dados sobre o número de ingressos comprados pelos melómanos na quarta edição desta maratona musical que continua a fazer novos adeptos.
Música e 'Paixões da Alma'
Quando em 26 de Abril de 2009, Mega Ferreira anunciou que haveria nova edição dos 'Dias da Música em Belém' em 2010, adiantando ainda que o mote para o evento musical se inspirava no título 'As Paixões da Alma' , um tratado de René Descartes publicado em 1649, pairou na sala de imprensa alguma surpresa. De que género de música gostaria Descartes? Como se iria relacionar o contexto do "cogito ergo sum" com escalas musicais? Que 'mosca' teria mordido o administrador do CCB que, de supetão, surgia como se fosse um paladino do cartesianismo, lendo em público um pequeno texto do filósofo francês? Pretendia ser mais um divulgador de Descartes? Era um dualista? Um essencialista? Mega Ferreira levantou uma pontinha do véu para tanta cogitação, cepticismo e dúvida quando informou os presentes que, em 2010, todo o programa musical estaria ligado ao amor, à alegria, à tristeza, à admiração, ao ódio e ao desejo, seis paixões 'simples e primitivas' em Descartes.
O filósofo escreveu que "Não há alma que seja tão fraca que não possa, sendo bem conduzida, adquirir um poder absoluto sobre suas paixões". Segundo Descartes, através do esforço e da prática, qualquer homem poderia determinar a sua vontade segundo juízos firmes e seguros que dirigiriam as suas acções, ligando esses juízos às representações que possui das coisas e desligando as mesmas dos movimentos da glândula pineal (orgão do corpo humano) que excitam as paixões na alma. Essa seria a solução de Descartes para os problemas decorrentes da influência excessiva das paixões sobre a vida do homem. Dando o nosso assentimento a máximas de conduta escolhidas por nós mesmos (levando em consideração o seu carácter racional e não as nossas inclinações pessoais), os humanos poderão evitar que as paixões presentes sejam o único guia das suas acções, não os deixando cair num estado de escravidão relacionado com os elementos irracionais na sua alma, que só resultaria em infelicidade e outros estados indesejáveis. Descartes foi o filósofo da preocupação 'obsessiva' com a dúvida, uma dúvida abissal e quase 'niilista'. Apresentou uma solução pretendidamente definitiva para a incerteza que a dúvida transporta consigo.
Mas o que teriam a filosofia e o pensamento de Descartes (por excelência, o inaugurador pleno da modernidade filosófíca e, em certo sentido, o primeiro grande filósofo racionalista e e sistemático do século XVII já que, embora mais novo que Hobbes, publicou primeiro do que este as suas obras fundamentais), encarnando o espírito científico moderno, privilegiando a interpretação matemática da natureza e adoptando uma concepção unitária da ciência, o que teria tudo isto, voltamos a perguntar, a ver com um fim de semana musical que, no CCB, seria preenchido pelos 72 espectáculos da quarta edição dos 'Dias da Música'?
Handel & handelófilos
Em parte, talvez a resposta possa começar já a ser dada pelo título da obra de Handel que preencheu o concerto inaugural de ontem à noite. Foi interpretado 'L'Allegro, il Penseroso ed il Moderato' com versos derradeiros onde se incita à temperança e à moderação de forma a manter as paixões humanas controladas.
Muitos espectadores acorreram ao Grande Auditório para aplaudir este primeiro espectáculo de um concerto que só terminou perto da meia-noite, com 140 minutos de música que, certamente, ali mesmo fabricou muitas dezenas de novos handelófilos. Handel completou a oratória em 1740, num ano em que o Inverno foi tão rigoroso em Londres que o rio Tamisa solidificou, os teatros fecharam e os ingleses passaram meses a tiritar com o frio. Handel encontrava-se num período em que estava a fazer alguma experimentação com o canto em língua inglesa. Inspirou-se na poesia de John Milton que foi tratada por Charles Jennens (um colaborador e libretita que frequentemente trabalhou com o músico alemão) nas duas primeiras partes, no 'Allegro' e no 'Penseroso'. A pedido do próprio Handel, os versos foram acrescentados por Jennens na terceira parte, a do 'Moderato'. Da alegria que predomina nos primeiros momentos da partitura, viajamos até à solidão, melancolia e à sageza pelas quais anseia 'Il Penseroso' e depois 'Il Moderato', tudo muito bem articulado por um Jennens inspirado.
Do ponto de vista cronológico, a obra musical de Handel nunca toca a época de Descartes que viveu entre 1596 e 1650. Handel nasceu em 1685 e faleceu em 1759. Também do ponto de vista conceptual, os versos de Milton e de Jennens celebram o charme da Natureza e de uma vida bucólica, as alegrias e as penas do mundo civilizado. Um forte odor pastoral liberta-se de trechos em que um rouxinol (ou uma cotovia) canta enquanto a Lua vai vagueando e subindo aos cumes, numa paisagem que em tudo recorda os prados da velha Albion. Campos, regatos, ceifeiras , pastores e folguedos sucedem-se quase como se estivéssemos à escuta de Jean-Jacques Rousseau. Não há nada "disto" no mundo das coordenadas cartesianas.
Retrospect Ensemble
De gesto amplo e peremptório, o maestro Matthew Halls (o mesmo que, em 2009, tinha protagonizado o espectáculo de encerramento dos 'Dias da Música' com o 'Magnificat' de Bach) regressou novamente ao palco do CCB para dirigir o Retrospect Ensemble, um agrupamento que se tornou reputado sob a designação King's Consort. No espaço de um ano, o Retrospect Ensemble começou finalmente a mostrar que já está curado da profunda ferida psicológica causada pela situação em que se encontra Robert King, o maestro, mentor e fundador do King's Consort. Em Junho de 2007, King foi condenado em Inglaterra a quase quatro anos de prisão, tendo sido acusado de 14 casos de assédio sexual a cinco menores do seu agrupamento, encontrando-se ainda no cárcere. Com uma discografia excepcional de 95 gravações dirigidas por Robert King, o prestigiadíssimo King's Consort foi rebaptizado com o nome de Retrospect Ensemble, tendo a decisão sido tomada porque a condenação do maestro King estava a ter repercussões que custaram ao agrupamento o cancelamento de gravações e de contratos para uma série de espectáculos.
Com muitos contrastes, a pequena equipa de instrumentistas britânicos entrou com grande à vontade no estilo handeliano, explorando recursos tão caros ao compositor germânico como a seiva, a pulsação, o furor e a energia triunfante. 'Allegro' significa rápido e cheio de vivacidade. Halls sabe facilitar a tarefa dos cantores. Pareceu preferir muitas vezes as paixões à razão, dando à peça, por vezes, uma leitura quase de igreja, uma aura litúrgica a roçar bem de perto 'O Messias'. Preocupado com o equilíbrio, o coro conseguiu conservar sempre a atenção do público. Com notável coerência narrativa, Gillian Keith (soprano) cantou com uma inteligência e com uma verdade sem preço. Com golpes de teatro e insolência, Peter Harvey (baixo) deu vida a instantes deliciosos. Os suspiros de Katherine Manley (soprano) e as gargalhadas de James Gilchrist (tenor) também mostraram como este par de cantores estava perfeitamente à vontade no domínio vocal, muito credíveis no estilo e no temperamento que exibiram no palco do CCB. Organista e cravista muito bem preparados também alimentaram o combustível artístico da noite, com uma prestação que emergiu como um dos ingredientes fundamentais no enriquecimento da matéria musical do concerto de abertura.
Reajustamento dos programas
A confusão no tráfego aéreo dos últimos dias obrigou a vários reajustes nos programas inicialmente anunciados , dadas as consequências sobre os planos de ensaios e sobre a deslocação de numerosos artistas e agrupamentos a Portugal.
Hoje pelas 16 horas no Grande Auditório, em vez do programa de música barroca francesa (música de Rebel e Rameau) previsto, o Retrospect Ensemble apresentará excertos de 'O Messias' de Handel. Às 18 horas, na Sala Sophia de Mello Breyner, em vez do recital do pianista turco Fazil Say, que se encontra doente, actuará Jorge Moyano com um programa inteiramente dedicado a Schumann. Às 20 horas, na Sala Luís de Freitas Branco, em vez do concerto do coro do Retrospect Ensemble, apresentar-se-á o espectáculo intitulado 'Sementes do Fado'. Às 20h, na Sala Sophia de Mello Breyner, em vez do recital da pianista Sa Chen (proveniente de Pequim, não conseguiu viajar a tempo), actuará a pianista coreana Hyun-Jung-Lim com um programa composto pelos Estudos de Chopin, op. 10 e op. 25
Duas alterações estão anunciadas para domingo: pelas 11h, na Sala Sophia de Mello Breyner, em vez do recital anunciado da pianista Sa Chen, actuará novamente a pianista coreana Hyun-Jung-Lim com o mesmo programa do dia anterior (Estudos de Chopin, op. 10 e op. 25). Às 13 h, na mesma sala, em vez do recital do pianista turco Fazil Say, actuará o pianista português Jorge Moyano com um programa inteiramente dedicado a Chopin no ano em que se comemora o bicentenário do músico polaco.
Fonte: Expresso
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